No último domingo, Cristiano Esmério passou seu primeiro Dia dos Pais sem a companhia do filho Christian, que, aos 15 anos, foi um dos dez garotos mortos pelo incêndio no centro de treinamento do Flamengo. “Nós éramos muito apegados. Queria que estivesse aqui comigo. Não tem dinheiro que pague a falta que ele me faz”, afirma o organizador de eventos, que vive com a mulher e os filhos gêmeos, de 3 anos, em uma casa de quatro cômodos no subúrbio do Rio de Janeiro. Seis meses depois da tragédia, o acordo de indenização com o clube rubro-negro ainda está longe de ser fechado e pode se encaminhar para uma extensa batalha nos tribunais. “Os dirigentes decidiram arrastar nosso sofrimento. O Flamengo gasta 200 milhões para contratar jogadores. E eu vou chorar a vida inteira pelo meu filho.”
Esmério não está sozinho em sua indignação. Outras famílias também dizem reviver a perda traumática dos filhos diante das escolhas tomadas por dirigentes do Flamengo, que recusaram a proposta extrajudicial mediada pela Defensoria do Estado e pelo Ministério Público do Rio. Pelo trato sugerido em uma câmara de conciliação, o clube pagaria 2 milhões de reais a cada família e uma pensão de 10.000 reais mensais até 45 anos completados pelas vítimas caso estivessem vivas.
O martírio dos jogadores abandonados com problemas de saúde
As indenizações somariam um montante de 20 milhões de reais, equivalente à folha salarial do clube para bancar mensalmente elenco, comissão técnica e funcionários. A recusa, argumentam os defensores e promotores, contrasta com as cifras do time mais rico do país. Somente este ano, o Flamengo empenhou quase 200 milhões de reais em contratações de reforços. Os 55 milhões comprometidos para trazer da Europa o meia Gerson e o zagueiro Pablo Marí, anunciados cinco meses depois do incêndio no Ninho do Urubu, quitariam praticamente todo o acordo de reparação às famílias estipulado por órgãos públicos.
Segundo a força-tarefa formada por Defensoria e MP, que segue monitorando os desdobramentos da tragédia, a contraproposta feita pelo Flamengo ficou “aquém daquilo que as instituições entendem como minimamente razoável diante da enorme perda das famílias e demais envolvidos”. Já dirigentes rubro-negros avaliam que os valores propostos estariam “muito acima” da jurisprudência em casos semelhantes com vítimas fatais e preferiram abrir negociações individuais a partir de um teto comum. Até o momento, o clube fechou acordo com as famílias de todos os 16 jogadores sobreviventes, que foram reincorporados às categorias de base, e de três garotos que morreram no incêndio —em uma delas, apenas o pai, que é separado da mãe, aceitou a proposta.
“Por se tratarem, em sua maioria, de famílias de baixo poder aquisitivo, algumas acabaram concordando com os valores impostos pela diretoria do Flamengo para receber logo a indenização e por temerem que daqui cinco ou dez anos o clube não tenha a mesma saúde financeira para honrar acordos judiciais”, diz a coordenadora da Defensoria Pública do Rio, Cintia Guedes. Ainda em fevereiro, duas semanas depois do incêndio, o MP solicitou o bloqueio de 100 milhões de reais nas contas do clube a fim de garantir o pagamento das indenizações. O pedido nem sequer foi julgado, já que o Flamengo entrou com recurso dizendo que a medida é desnecessária. “Desde as primeiras conversas, ficou claro que a estratégia dos atuais dirigentes é postergar ao máximo uma definição sobre os pagamentos”, afirma Guedes. “As famílias tão cedo não virarão a página dessa tragédia. Vão remoer as feridas a cada etapa do processo judicial, que costuma demorar bastante.”
Cristiano Esmério remói seu desgosto a cada anúncio de nova contratação do Flamengo. “O recado que os dirigentes passam é que, para o clube, a vida dos nossos filhos não vale nada.” Christian era goleiro. Integrava a base flamenguista desde os 12 anos. Reconhecido como pegador de pênaltis, havia defendido uma cobrança na conquista do título do Campeonato Carioca sub-15 e figurava em convocações da seleção brasileira da categoria. Apesar da projeção do filho, que estava prestes a assinar seu primeiro contrato profissional com o Flamengo, o pai rechaça a hipótese de fazer leilão por indenizações, explicando que reivindica o mesmo valor definido para todas as famílias por Defensoria e MP, que não teve participação de advogados nem distinção por estágio de carreira das vítimas. “O Christian era uma criança como as outras que morreram no Ninho. Sua vida vale tanto quanto a delas”, diz Esmério. “Talvez ele nem se tornasse jogador. Poderia ser gari, médico ou pintor. E o que isso importa agora, que eu não tenho mais meu filho?”.
Site Elpaís
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