Há algo que salta aos olhos na conduta do atual ministro Sergio Moro, antes mesmo de qualquer julgamento ou análise mais acurada sobre as mensagens vazadas pelo site The Intercept Brasil. A arrogância do ex-juiz da Lava Jato é um traço marcante e foi ela que o colocou no exato lugar em que hoje ele se encontra. Antes de entrar no mérito do The Intercept, uma pergunta: como um magistrado que estava revolvendo a arena da corrupção bilionária de um continente deixou o flanco aberto para que suas mensagens e da força-tarefa fossem resgatadas sem fiar-se de um sistema de proteção à altura da barafunda que estava sendo investigada? E aos olhos presentes, como um magistrado que tanto se beneficiou das pontes com a imprensa para forjar-se paladino da moral, agora é capaz de tratar com reforçado desdém uma investigação jornalística?
Moro se vê obrigado a deslegitimar as mensagens que vieram a público por não saber sua origem, mas a mesma arrogância aparece ao defender a sua “suposta” postura que dali se depreende. “Não vejo nada demais”, “sensacionalismo”, “absolutamente normal”, “Eu sempre agi conforme a lei”, disse Moro quando questionado, com a segurança de quem domina cada linha do seu traçado julgamento. Com essa mesma postura, já se adiantou em julgar o desfecho da série de reportagens do The Intercept Brasil mesmo sem conhecer todos os dados sobre o material que eles possuem. “A montanha pariu um rato”, disse em português, que no latim do seu tuíte deste domingo só reforça o pedantismo. O mesmo vale para a pressa em vincular o trabalho dos jornalistas com a invasão recente de um hacker “a serviço de uma organização criminosa estruturada”, inclusive com supostas edições de mensagens. A Folha de S.Paulo fez o mesmo exercício que já havia sido feito por jornalistas do The Intercept, de cruzar informações das trocas de mensagens entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol e não viu indícios de adulteração.
O magistrado não entendeu, até o momento, que o que está sendo avaliado em sua conduta como juiz de uma operação ambiciosa como a Lava Jato não são fragmentos de mensagens. É o quanto dessa pressa em tirar conclusões —como o faz agora— pode ter contaminado julgamentos da Lava Jato e comprometido a confiança na Justiça brasileira.
Hoje, tanto as mensagens transcritas pelo The Intercept Brasil quanto suas atitudes diante delas, vão ajustando sua imagem. Não se pode reduzir a operação, e a vontade da força-tarefa de responder ao anseio popular de combater a corrupção, a um maniqueísmo barato. Claro que todo cidadão brasileiro deseja ver desvios de verbas e condutas de má fé coibidas. Todos aplaudimos que ratos tenham sido expulsos da Petrobras, que Sergio Cabral tenha confessado sua montanha de delitos, e que Geddel Vieira Lima esteja preso. Mas isso não significa fechar os olhos para movimentos que mais parecem um alpinismo distorcido que ultrapassa o bom senso, ainda mais depois de um timing político que foi impresso pela Lava Jato. Esse timing não passou despercebido pelo Telegram, mas à vista de todos nos últimos cinco anos. Não há interpretação sensacionalista que resista a algumas coincidências do calendário das operações que muitas vezes pareciam agendas políticas, com mais esforço para desvendar crimes de um partido e não de outro.
Essa é uma realidade que sempre dividiu juristas. Moro nunca foi unanimidade entre acadêmicos do Direito. Muitos, sem viés partidário, questionaram sua postura que avançava sobre o limite do Estado de Direito. Mas para o gosto popular, o atual ministro da Justiça sempre representou o exorcista do demônio que o Partido dos Trabalhadores encarnou no Brasil desde 2013, uma tese abraçada sem grandes debates quando o comportamento de manada estava em curso no segundo mandato de Dilma Rousseff.
O magistrado jovem e corajoso ocupou o imaginário de um país estafado por denúncias de corrupção, elevado a uma categoria heroica jamais vista antes no Brasil para alguém que exercia o papel de juiz de primeira instância. Isso alimentou a arrogância do hoje ministro, que se viu retratado em livros, filme e série antes mesmo de concluir sua principal obra, ou seja, sem mesmo precisar dizer exatamente a que tinha vindo. Foi aclamado antes do fim do espetáculo, o que o autoblindou a reflexões mais humildes.
A arrogância de Moro se fez presente também quando aceitou o cargo de ministro de Justiça do presidente que dobrou a demonização da esquerda. Ali, Moro manteve a majestade mais por inércia do que por mérito. Sua atitude depois de negar que essa possibilidade de aceitar um cargo público existisse foi vista como vexaminosa mundo afora. Até mesmo um ex-procurador da Mãos Limpas, a operação italiana que inspirou o então juiz, fez críticas a Moro. Mas nada o impediu ou o fez ponderar que sua atitude poderia ser mal vista.
Quando juiz, ele já havia dado mostras de que era impermeável a críticas, mesmo que vindas de um ministro do Supremo como Teori Zavascki, quando divulgou diálogos gravado entre Dilma e Lula mesmo fora do horário da autorização judicial. “Fiz o que achava certo e não me arrependo. Só não esperava tanta controvérsia”, disse ele em recente entrevista a Pedro Bial, tomando por controvérsia quem se indispõe a ele. Mesmo que Zavascki tenha tentado apenas corrigir desvios de uma operação que ele mesmo validou antes de morrer. Ao manter-se fiel à sua estratégia questionada por um ministro do Supremo em um programa de entrevistas, o ex-juiz da Lava Jato mostrou um ar soberbo, daquele que se acredita superior aos demais.
Moro nunca se viu, de fato, tendo sua atuação enquanto juiz sob escrutínio fora do círculo jurídico. Não percebe que ao despir-se da toga que o protegia teve um canhão de luz iluminando a sua sombra. Julga-se um homem sem defeitos e alheio a ajustes, projetando-se para voos mais altos, seja no Supremo ou na Presidência. São hipóteses que ele nega, embora já tenha se traído várias vezes sobre suas aspirações. Moro não entende que alimentou uma expectativa tão alta sobre si mesmo, que agora é escravo dela. Louve-se a Lava Jato e suas conquistas por um país mais justo e soberano, mas desça à terra para reconhecer-se um homem de excessos contraditórios que precisam ser confrontados.
Do El País
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